Eu tenho um defeito. Não é ser sincera demais, nem ser teimosa, nem rir nas alturas erradas, isso é feitio, não é defeito. O meu profundo defeito é ver sempre o lado bom das pessoas.
E atenção: não é romantismo, é burrice espiritual temporária, porque basta trabalhares muitos anos no atendimento ao público para a vida te dar uma chapada emocional tão bem dada que até a tua alma fica com marca.
Eu trabalhava em gestão e chefia, sabes aquela posição meio estranha entre “és responsável por tudo” e “não mandas em nada”? É essa.
És obrigada a controlar o caos, mas não tens direito a surtar. És paga para gerir o drama dos outros, mas se tiveres um dia mau, és fraca.
Clientes? Oh, os clientes…
É lindo como o ser humano muda quando tem um carrinho de compras e cinquenta cêntimos de razão na mão.
De repente, nasce ali um monstro da mitologia do ego: exige, grita, reclama, trata-te como se fosses a culpada por ele ter acordado torto, por o pão estar demasiado escuro ou demasiado claro, e por os astros não estarem alinhados com o signo dele.
Muitos, muitos anos a lidar com isto, sem máscara, sem filtro, sem compaixão.
A humanidade nua e crua… e às vezes com bafo.
E isso corrói.
Não o corpo.
A alma.
Corrói a vontade de sorrir.
Corrói a empatia que antes era tão natural.
Corrói a paciência que tu achavas infinita.
Até que um dia percebes o que muita gente ainda não entendeu: o problema não é trabalhar. O problema é trabalhar com pessoas que desaprenderam a ser humanas.
E eu sei que vai haver quem diga: “Ai mas é o trabalho, faz parte.”
Faz parte? Desde quando destratar alguém faz parte do recibo verde? Desde quando a falta de educação é cláusula contratual? Desde quando pagar garante o direito de desumanizar?
Não, meus amores. Pagar não te torna superior. Pagar não te dá licença para insultar. Pagar não te dá direito a descarregar frustrações nos outros.
Isso não é poder. É feiura na alma.
E queres saber o mais irónico? Eu ainda via o lado bom das pessoas.
Mesmo quando gritavam. Mesmo quando me tratavam como lixo. Mesmo quando me tentavam esmagar o psicológico com arrogância.
Até que o cansaço virou lucidez.
Acordei um dia e pensei: “Se continuo a ver o lado bom de toda a gente, quem é que vê o meu?”
E foi aí que comecei a escolher.
A escolher ambientes onde a empatia não seja esmola.
A escolher relações onde o respeito não dependa do humor do dia.
A escolher pessoas que sabem falar com seres humanos, não com coisas.
Porque, sinceramente, eu não quero nunca mais um emprego onde o pior do mundo é rotina.
Eu quero vida.
Eu quero humanidade.
Eu quero presença.
Eu quero o lado bom das pessoas, sim, mas sem precisar sofrer para o encontrar.
Se eu tenho defeito?
Tenho.
Ver o lado bonito de quem só me mostra o feio.
Mas já estou a (tentar) corrigir.
Agora escolho onde coloco a minha alma.
E isso...dá mais trabalho do que empurrar paletes, mas cura.
O atendimento ao público ensinou-me duas coisas:
1. nem todo cliente tem razão,
2. e quem tem alma demais precisa de escolher melhor onde a gasta.
Porque empatia não é brinde.
É doação. E o meu stock acabou. 😌
O cliente não tem sempre razão.
Mas tem sempre um ego para resolver.
E antes que venham atirar pedras para o balcão, deixemos claro: eu não estou a julgar, estou apenas a constatar o óbvio.
E se disserem que do outro lado, o lado de quem atende, também há arrogância, grosseria e falta de noção… têm razão.
Porque ninguém sai ileso depois de passar anos a servir pessoas.
Somos esponjas. Absorvemos tudo: a frustração alheia, a pressa, o mau dia, a falta de educação, o ego inflado, a carência emocional, o trauma não tratado e até aquela mania de se achar superior só porque está a pagar.
E na vida, como no atendimento, há uma lei simples: educação e amor geram amor.
Ruindade gera esgotamento.
Quando alguém descarrega ódio onde só precisava de falar com respeito, aquilo não fica só no ar: fica no corpo, fica na mente, fica no sistema nervoso de quem está ali a trabalhar por salário, sim, mas também por dignidade.
E não devia ser tão difícil entender isto, pois não?
Muitos anos no atendimento ao público.
Adoro pessoas. Mas não estas.
Anos a levar com gente que acha que tem licença emocional para descarregar a vida inteira porque está a pagar um pacote de arroz.
E aqui vai a verdade que ninguém gosta de admitir: não é o trabalho que desgasta, são as pessoas. A falta de humanidade e respeito mútuo.
Eu já lidei com clientes que falavam comigo como se eu fosse uma extensão do carrinho de compras, outros que confundiam “bom dia” com “eu mando e tu obedeces”, e ainda aqueles que acham que simpatia está incluída no preço do bacalhau e não precisa de ser reconhecida e valorizada.
E sim, eu sou psicóloga.
Sim, eu sou reikiana.
Sim, eu escrevo sobre empatia, cura, amor-próprio, comunicação… mas nada disso é anestesia contra falta de educação.
A verdade é que um trabalho onde tens de lidar com pessoas todos os dias acaba por te mostrar o lado mais cru da humanidade: o que cada um faz com a frustração.
Há quem a transforme em gentileza — e essas almas salvam o dia.
E há quem a transforme em abuso — e essas almas sugam o que ainda era bonito em ti.
E é por isso que tanta gente sai do atendimento ao público exausta — não é só burnout de trabalho, é burnout de humanidade. Saturação social.
Mas acho que é isto: às vezes o karma não vem do universo, vem da caixa e dos corredores do supermercado.😏💳✨
Bárbara Pereira ✍️
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